Introdução


O estudo das linhagens, já praticado na Antiguidade Clássica, desenvolveu-se na Europa Medieval quer pelo culto ancestral da memória dos antepassados, quer devido às necessidades criadas com as sucessões dinásticas, a transmissão de títulos, a concessão de mercês, ou com a sucessão em morgados. A ela se recorria frequentemente pela necessidade de fazer habilitações de genere para provar a limpeza de sangue, sem a qual não era possível o ingresso nas ordens religiosas e militares, ser familiar do Santo Ofício, ou encartar-se em determinados cargos. 

Durante algum tempo, após a abolição da necessidade de fazer provanças, a Genealogia foi desprezada, mal amada como uma actividade de ociosos e injustamente ridicularizada por ser considerada um de catálogo de vaidades. Porém, como uma das ciências auxiliares da História, ela estuda as origens das famílias e a sua evolução através das sucessivas gerações, o que a torna particularmente útil a diversos ramos do saber. Ao traçar uma sucessão de biografias familiares, a Genealogia fornece-nos informações que permitem uma abordagem sociologicamente relevante do trama social que animou a vida da nação, assim como dos diversos valores dominantes em relação com os grandes ciclos políticos e económicos com vista um melhor conhecimento do passado. 

Para alguns estudiosos a Genealogia é uma ciência social autónoma relacionada com a história da família, servindo de apoio à biologia, à medicina, à antropologia, à demografia e, principalmente, à genética. Tudo isto sem deixar de ser, também, uma técnica com fins meramente culturais e recreativos; passatempo apaixonante na busca do passado familiar e de pontos de referência contra o desenraizamento individual, ou reacção salutar contra a massificação da sociedade actual. 

ANTT, Livro do Armeiro-Mor (1905), fl. 130.
A investigação genealógica encontra-se, actualmente, em fase de reabilitação. É bom observar o número crescente dos seus cultores, cada vez mais jovens, em demanda das diversas bibliotecas e arquivos desta especialidade, na gratificante aventura da descoberta do passado familiar. 

Registamos com apresso o aparecimento de algumas publicações recentes de genealogia e de heráldica, assim como o aparecimento de reedições de algumas obras fundamentais. O recente interesse por estes dois antiquíssimos ramos da História, ao contrário do que os seus detractores podem supor, é extensivo a muitos outros países, mesmo àqueles onde nunca houve grande tradição aristocrática.

Esta aliciante procura das origens, depois de mais de um século de estagnação, têm sido objecto de inúmeras conferências, exposições, debates, cursos livres em universidades e encontros patrocinados por várias organizações internacionais; sinais estes da sua vitalidade e aceitação por um público que, apesar de ainda constituir uma restrita minoria cultural, é cada vez mais vasto. 

O mais antigo genealogista português que se conhece é D. Pedro (1289-1354), Conde de Barcelos, filho bastardo rei D. Dinis, autor do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Em épocas subsequentes a este autor, foram produzidos em Portugal inúmeros trabalhos manuscritos desta especialidade, dos quais se conserva um grande acervo na Torre do Tombo. Todos os tratados de genealogia nobiliária andam associados à heráldica, da qual se conhecem algumas obras elementares à sua iniciação. Uma delas, manancial detalhado de preciosas informações técnicas, da autoria de Luís Stubbs Saldanha Monteiro Bandeira, é o Vocabulário Heráldico (Lisboa, 1984); outra, é o reportório das armas das diversas famílias nacionais da autoria de Afonso Eduardo Martins Zúquete, a qual tem o título de Armorial Lusitano (Lisboa, 1987).

Recorrendo a alguns autores antigos e a diversos manuscritos de linhagens, existe uma obra em doze volumes da autoria de Felgueiras Gaio, o Nobiliário das Famílias de Portugal (Braga, 1938), peça fundamental para o estudo que empreendemos. 

Manuel José da Costa Felgueiras Gaio (1750-1831), juiz, natural de Barcelos, era senhor da Casa da Torre Velha no Louro, da Casa do Paço em Vitorino das Piâes, do Vínculo dos Felgueiras em Vila do Conde e, acima de tudo, era possuidor de uma grande paixão pela Genealogia. A enorme fortuna que possuía facultou-lhe a possibilidade de dedicar grande parte da sua vida a esta ciência, a qual o levou a escrever nada menos do que 33 tomos genealógicos. Linhagista de mérito, produziu um trabalho de grande e valia, ao qual todos os investigadores da especialidade, apesar dos erros e imprecisões nele contidos, não podem deixar de recorrer. Foi o nosso caso e, por isso, aqui lhe prestamos tributo, pois sem a sua contribuição não seria possível ter-se produzido parte deste trabalho, nomeadamente como ponto de partida para pesquisar as origens da família aqui em estudo.

Outro autor genealógico que nos foi indispensável e muito contribuiu para esta modesta obra, foi Manuel Rosado Marques de Camões e Vasconcelos (1899-1978), grande genealogista, autor de dois volumes intitulados Oliveiras e Cunhas da Casa do Outeiro Termo do Fundão (Lisboa, 1962), que nos dão a conhecer os principais ramos da família Trigueiros Martel. Manuel Rosado, distinto membro do Instituto Português de Heráldica e autor de vários estudos genealógicos sobre a nobreza das Beiras, interessou-se por esta família devido ao facto de ter casado com D. Maria da Conceição de Albuquerque da Costa Brandão, filha do segundo Visconde do Ervedal, descendente dos Oliveiras e Cunhas. Por esta sua obra de grande utilidade, muito gratos lhe estamos.

ANTT, Livro da Nobreza e Perfeição
das Armas
 (1521-1541), fl. 36v.
Uma outra ciência auxiliar da História, associada à Genealogia desde o início do século XII, é a Heráldica, a qual tem por fim a formação e descrição simbólica de instituições, acontecimentos ou qualidades individuais e familiares que se devem perpetuar. A composição de um brasão de armas obedece a regras, assim como a alguns preceitos estéticos elementares.

Sabemos que a Heráldica, numa forma ainda incipiente, já era conhecida desde tempos imemoriais na Grécia Clássica, pois, já Homero se lhe refere nas suas descrições dos símbolos pessoais usados pelos guerreiros. A arte de compor brasões adveio da necessidade dos antigos chefes militares se identificarem por símbolos bem visíveis e de se agruparem em torno de uma bandeira. O escudo heráldico representa o escudo de guerra usado pelos guerreiros medievais, no qual representavam as suas armas para se distinguirem uns dos outros. A forma do citado escudo, usada em Portugal, apresenta o bordo inferior boleado, porém, apesar desta regra, é vulgar a representação de formas mais fantasiosas, regra geral de origem estrangeira. 

Foi no reinado de D. João I (1385-1433), posteriormente à batalha de Aljubarrota, que pela primeira vez se institucionalizou a arte heráldica, com a criação de regras para o uso de brasões. Esta nova necessidade ficou a dever-se ao facto de grande parte da nobreza, emergente da nova ordem social, ter cometido alguns abusos apropriando-se indevidamente de brasões de famílias nobres extintas por terem seguido o partido de Castela. Com o fim sanar a confusão reinante criou-se um corpo de oficiais de armas, tais como reis de armas, arautos e passavantes. Competia a estes funcionários régios registar e impedir o uso abusivo de brasões, assim como zelar para que a composição destes se fizesse de acordo com as regras da heráldica. Porém, só no reinado de D. Manuel I (1495-1521), após várias reformas, a heráldica atingiu a perfeição.


Com este estudo genealógico pretendemos resgatar do esquecimento, enquanto é tempo, as sucessivas gerações desta família que segundo alguns autores é originária da corte dos Reis Católicos, em Espanha, e passou a Portugal no ano de 1500 durante o reinado de D. Manuel I. Nesta nova pátria de adopção, logo estabeleceu laços de sangue com outras famílias da idêntica origem geográfica, assim como com a pequena nobreza tradicional portuguesa, atingindo algum relevo social nos locais em que se fixou.

Partindo no início da pequena nobreza de cargos, faz todo um longo trajecto até à obtenção de algum relevo após a Restauração de 1640. O estabelecimento da monarquia constitucional, que muitos dos seus elementos serviram, levaram parte desta família a ascender à nobreza titular, ascensão esta que se mantém até à implantação da República em 1910. 

Nesta pequena família, aparentemente com origem estrangeira, destacaram-se alguns indivíduos ao serviço da corte ou no exercício de cargos públicos superiores por via da sua formação letrada. Alguns destes servem na magistratura, outros abraçaram a carreira das armas com postos de algum relevo no Oriente, principalmente na Índia portuguesa, assim como participam das antigas e prestigiadas Ordenanças dos Concelhos, em períodos militarmente conturbados e em praças de guerra da cintura de defesa da fronteira portuguesa.

As diversas casas solarengas sobre as quais incidiu esta pesquisa, tinham como suporte económico um vasto património fundiário muitas vezes vinculado a morgados, os quais permitiram sustentar com brilho, durante muito tempo, o bom-nome dos respectivos ramos familiares. A extinção dos morgados, assim como a recente pulverização da terra, resultante da extinção dos vínculos no século XIX, operou uma vasta transformação social que culminou na destruição do sistema económico que sustentava estas ilustres Casas.

Além da memória que a heráldica e a genealogia se encarregaram de nos transmitir, ficou-nos um grande e inalienável património histórico familiar, constituído por tradições, conceitos de honra, nobreza de princípios e de valores humanos: bens de grande valia, num mundo tão carenciado deles. 

Este trabalho, espécie de arqueologia de afectos, foi feito ao longo de muitos anos de descoberta em descoberta, através de diversos manuscritos, livros de registos paroquiais, inscrições e pedras de armas em sepulturas e fachadas solarengas. À investigação histórica que empreendemos e foi recheada de gratas surpresas, foi acrescentada um número infindável dos mais recentes elementos familiares, trabalho este só possível pelo contributo abnegado de diversos familiares que fizeram desta obra uma espécie de projecto colectivo baseado numa Cultura Familiar. A todos eles, e foram muitos, prestamos aqui a os nossos mais sinceros agradecimentos, pois, sem a sua colaboração, este trabalho teria ficado muito incompleto. 

JJFTL; C.N., L. 2, Fl. 8v,
reg. n.º 1339.
Temos a noção exacta que, caso não houvesse limitações de tempo, poderíamos ter ido muito mais longe e com mais rigor científico, objectivo este que legaremos às gerações vindouras. Desde já alertamos o leitor que um estudo desta natureza e extensão não permite colocar o mesmo grau de rigor e de detalhe em todos os ramos considerados.

Seria egoísmo da nossa parte não partilhar com toda uma imensa comunidade de sangue este passado comum que nos une e, paulatinamente, foi resgatado ao esquecimento.

Aos que depois de nós vierem, peço-lhes que não ignorem a memória que aqui lhes deixamos dos nossos antepassados comuns. 

Que as suas vidas sirvam de exemplo aos vindouros, assim nós saibamos honrar o bom nome que eles nos legaram.

                        João Trigueiros

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Nota:

Convicto de que as línguas não evoluem por decreto,

este texto vai escrito de acordo com o Português anterior ao “Acordo Ortográfico”,

que considera não ter trazido dignidade à Língua Portuguesa,

que assim ficou mais pobre, mais confusa e com menos beleza estética. 








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